Entrevista com Biólogo Especialista em Saúde Coletiva
Mestrando em Biologia, João Paulo Rocha Netto, um amigo desses que a gente acaba fazendo em papos de livraria, dá-me a impressão de saber de tudo sobre a vida dos pombos. Não é um mero curioso sobre a vida e “obra” desses ‘ratos sem asa’, vistos como praga, por alguns; venerados e admitidos nos arcanos sagrados, para outros, tão antigos na vida dos homens quanto as primeiras manifestações do espírito religioso do homo sapiens.
Em Curitiba devem ser pelo menos meio milhão de pombos, espalhados pela cidade e Região Metropolitana, na avaliação do jovem biólogo, funcionário público voltado, em seu serviço, a examinar a vida dessas aves no locus urbano, e o bem e o mal que podem gerar. Há doenças, sabidamente, que eles transmitem. Doenças que podem matar.
Como e por que os pombos se multiplicam no cenário urbano com tanta intensidade? A primeira resposta talvez esteja nesta frase: “É crime matá-los”. As leis brasileiras, de proteção à vida animal, são claras. Isso não impede que continuem até sendo uma iguaria cobiçada e servida em casas de pasto. O pombo continua sendo prato requintado, como foi nos banquetes reais do Mundo Antigo.
Mas vão sobreviver e se mostrar cada vez mais prolíficos, tudo indica, a continuar o verdadeiro culto que se presta aos pombos, alimentados por uma multidão de “fiéis” seguidores. Esses que fazem do pombo um objeto de veneração são na maioria mulheres, de orientação católica. Mas tem gente de todas as cores e tintas no mesmo culto. Só para lembrar quão persistente é a imagem da ave: está associada à paz, ao papa, ao Espírito Santo, à terceira pessoa da Trindade Cristã. Não é pouco.
Como e por que nasceu seu interesse pelos pombos?
Meu interesse com pombos surge ao observar a importância ecológica destas aves no ambiente urbano. Como biólogo, incomoda-me escutar em conversas de rua pessoas que pejorativamente associam-no ao “rato com asas”, expressão popularizada no ano 2000 pelo ex-prefeito londrino Ken Livingstone por achar que tais aves fossem sujas e que transmitissem doenças.
Acho necessário esclarecer o papel ecológico dos pombos como parte integrante da biodiversidade urbana. A suposta possibilidade de transmissão de zoonoses na verdade é consequência de um desequilíbrio ambiental de causas antrópicas. Ou seja, somos nós que criamos as condições de adoecimento e não exclusivamente o pombo ou qualquer outro animal.
Qual a espécie de pombo mais comum de encontrar-se nas grandes cidades?
O pombo comum (Columba livia) é o mais abundante dentre todas as aves em Curitiba. Contudo, ele faz parte de uma complexa fauna urbana dividindo espaço com pelo menos outras 168 espécies de aves, e ainda 37 espécies de morcegos, sem contar as centenas de invertebrados que também voam pelos nossos céus.
Acredito que os pombos não são pragas e não devemos compará-los a ratos, baratas, lagartas, morcegos ou qualquer outra praga urbana. Cada espécie biológica tem um papel ecológico importante dentro do ambiente e na cidade não é diferente.
Há quanto tempo você os estuda? Qual o cenário, o locus, em que vivem esses pombos? Curitiba? Região Metropolitana?
Observo mais atentamente a presença de pombos em Curitiba há pelo menos três anos desde que comecei a trabalhar como biólogo na Secretaria Municipal de Saúde. Em meu serviço atendo solicitações da população curitibana preocupada com a manifestação da fauna sinantrópica considerada nociva. Dentre as espécies mais requisitadas para orientação estão em primeiro lugar os pombos, principalmente no centro da cidade. Em menor número, mas também de modo significativo, chegam até mim solicitações de providências a serem tomadas para o mosquito da dengue, roedores, baratas e outros invertebrados diversos.
Os pombos são encontrados facilmente descansando em fios de postes, em galhos firmes de araucárias e disputando migalhas de pão nas calçadas e praças em meio aos pedestres apressados. Contudo, o segredo do sucesso adaptativo destas aves não está exatamente onde as encontramos durante o dia e sim onde descansam à noite. O pombo comum assim como seu ancestral selvagem, o pombo-das-rochas, forma casal monogâmico e procura locais protegidos para a construção dos ninhos.
No estado selvagem habitam rochedos, penhascos, falésias, precipícios ou fossos. Contudo, em ambiente urbano adaptaram-se a outros habitats, nidificando em prédios, construções e patrimônios históricos, sobretudo aqueles que se encontram abandonados como os muitos presentes no Largo da Ordem e no centro histórico de Curitiba.
Há danos à saúde humana na convivência com os pombos? Se há alguma implicação (como toxoplasmose), peço para explicá-la. Em que grau deve ser evitado o contato com os pombos?
Conviver com pombos de vida livre nas cidades não causa danos à saúde humana. O risco de transmissão de doenças só se estabelece quando se fecha o ciclo de vida de um determinado patógeno ou parasita entre vetores e hospedeiros.
Seria necessário um excesso de pombos enclausurados em ambientes pouco iluminados, sujos e estressantes para que ocorresse a transmissão de doenças a exemplo da criptococose, histoplasmose, psitacose ou ornitose e salmonelose. Não existe “doença de pombo”. Informações pseudocientíficas atemorizam a população em geral e induzem a preconceitos de toda ordem contra pombos e seus alimentadores.
A carne dos pombos é comestível, sem problemas para a saúde do ser humano?
Ressalto que a toxoplasmose não é transmitida diretamente pelo pombo ao homem, pois esta ave não é hospedeira preferencial do protozoário Toxoplasma sp. A principal fonte de transmissão da toxoplasmose ocorre pela ingestão de carne crua ou mal passada infectada com cistos do protozoário e de verduras mal lavadas, contaminadas principalmente pelos dejetos de felinos.
Logo, a carne de pombo é comestível desde que a carne provenha de aves criadas em cativeiro, o que permite maior controle sanitário e de qualidade, pois recebem rações balanceadas de milho, ervilha, lentilha, sorgo, aveia, arroz com casca, ervilhaca e feijão fradinho. Além disso, pombos em cativeiro bebem muita água e são banhados frequentemente para evitar parasitas atraídos pelo sangue quente da ave. A dieta controlada permite que engordem mais do que os silvestres e não é aconselhável comprar carne de pombo cuja origem seja desconhecida ou duvidosa.
Como foi o consumo de pombos nas idades antigas, nas velhas civilizações?
A carne de pombo já foi muito apreciada no passado por diferentes civilizações. Acredita-se que os pombos tenham sido uma das primeiras aves criadas pelo homem para fins culinários nos primórdios da avicultura. Os pombos foram ao longo da história utilizados em práticas religiosas e culinárias.
Estudos arqueológicos identificaram a presença de ossos de pombos em vestígios de jantares e também em cerimônias religiosas de civilizações antigas, tais como sírios, fenícios, egípcios, hindus e cristãos. Na Roma Antiga, os pombos foram amplamente utilizados como alimento, chegando a estabelecer um sofisticado mercado que chegava a possuir 5.000 animais em cativeiros construídos em fazendas especializadas.
Qual a população de pombos que existe em Curitiba? Ou, quantos pombos tem a cidade (as cidades em geral) em relação a habitantes?
Não se sabe exatamente quantos pombos existem em Curitiba, pois não é tão fácil realizar a contagem de aves. O comportamento esvoaçante dificulta a precisão do número de indivíduos observados. Para a contagem de pombos urbanos, as praças são os locais ideais e é necessário o auxílio de pelo menos oito colaboradores.
Não há registros da realização de um censo completo de pombos em Curitiba. Eu avalio por estimativa e comparação com outras cidades que já realizaram o censo que haja pelo menos meio milhão de pombos em nossa cidade e Região Metropolitana. Em Londrina, uma cidade com 540 mil pessoas, um levantamento feito entre 2004 e 2005 estimou 170 mil pombas amargosas.
Quais os perfis de homens e mulheres que alimentam e ampliam a população de pombos dando-lhes comida?
Em Curitiba existem muitas pessoas que diariamente no mesmo horário e local, independentemente das condições climáticas, visitam as praças de nossa cidade carregando sacos com milho, quirera, pão e sobras de refeições para servir aos pombos. Normalmente são idosos, mas há também muitas crianças, estimuladas por alguns adultos, que também alimentam pombos, e ainda pessoas em situação de rua. Não há predominância de gênero masculino ou feminino.
É muito comum se autodenominarem protetores dos animais e da natureza e de modo geral têm uma visão idílica ou bucólica sobre o meio ambiente, ou seja, romanceiam as relações ecológicas do homem com a natureza. Costumam frequentar as praças pela manhã bem cedo ou já no fim da tarde, sendo que as crianças e as pessoas em situação de rua são alimentadores ocasionais.
A visão dos que alimentam pombos é, de alguma forma, religiosa? Aborde o assunto.
Uma revoada de pombos traduz uma alegria messiânica. Em jogos olímpicos, visitas e cerimônias do papa, posse de presidentes, enterro de personagens célebres, coroamento de reis, celebrações de matrimônio, assinatura de tratados e acordos de paz, desfiles militares e em tantas outras ocasiões, a revoada de pombos é um selo simbólico.
Os alimentadores quase sempre remetem sua fé no Cristianismo como subterfúgio moral para o que fazem enfatizando a admiração com a Praça de São Pedro no Vaticano como exemplo emblemático de revoada de pombos. A cultura judaico-cristã enaltece a figura do pombo.
Por seu caráter aparentemente pacífico, sua doçura, seus arrulhos e gestos amorosos constantes para com seu par e com sua prole, o pombo tem ainda a imagem iconográfica associada ao amor e ao convívio harmonioso. A vida monogâmica faz dos pombinhos serem simbolicamente associados aos amantes.
Os pombos são protegidos por lei? É possível eliminar as populações de pombos sem incorrer em penalidades?
O pombo é tutelado pelas legislações de proteção à fauna e de crimes ambientais em vigência no Brasil. É proibida a caça, a perseguição, a destruição, a apanha, e ainda práticas de abuso, maus-tratos, ferimento ou mutilação de pombos sem a devida autorização ambiental de órgãos competentes. A pena prevista no flagrante de tais atos é a prisão em regime semiaberto ou aberto de três meses a um ano e multa. Mesmo assim, um sem-número de medidas de controle à população de pombos urbanos são propostas e adotadas com características de abuso e maus-tratos.
Dentre estas medidas cito algumas proposições vetadas na Câmara Municipal de Curitiba que estipulavam captura e o extermínio de pombos. Em outras cidades brasileiras estudou-se a possibilidade de servir carne de pombos capturados para crianças em escolas públicas, o que também foi vetado. Na Argentina já foi proposto servir carne de pombo aos pobres acreditando que com isso resolveriam dois problemas com uma única medida, e que também não entrou em ação.
É preciso esclarecer para a população sobre o real papel dos pombos na ornitologia urbana e estabelecer o diálogo entre as partes envolvidas em conflitos e discórdias decorrentes da imposição sobre um único ponto de vista.
Não deveríamos nos preocupar tanto em intervir na condição de sobrevivência dos pombos e sim com as nossas próprias limitações que nos incapacitam de sobreviver em comunidade com as demais espécies. Criamos cidades cada vez mais artificiais à natureza e globalizadas segundo um modelo ocidental de desenvolvimento. Por seu caráter aparentemente pacífico, sua doçura, seus arrulhos e gestos amorosos constantes para com seu par e com sua prole, o pombo continuará com a imagem iconográfica associada ao amor e ao convívio harmoniosos. Ironicamente, deveríamos aprender mais com estes pombos urbanos que tanto simbolizamos.
Autor: João Paulo Rocha Netto
Biólogo especialista em Saúde Coletiva (UP, 2012), está concluindo o mestrado em Gestão Ambiental na Universidade Positivo com a dissertação intitulada Ecologia, Cultura e Representações Sociais: olhares sobre o pombo e a sua problemática. Trabalha na Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba há três anos junto à Coordenação de Vigilância Sanitária, orientando a população sobre a fauna sinantrópica entre outros temas de Saúde Ambiental na região central da capital.